Em pleno Marais, encontramos o Hôtel de Sens, um belo palacete que data da Idade Média. Hoje, ele é a sede de uma das bibliotecas mais legais de Paris e nós podemos visitá-lo.
Na Idade Média, a diocese de Paris dependia da arquidiocese de Sens, cidade localizada na Bourgogne. Por isso, os arcebispos de Sens sempre iam à capital para resolver negócios relacionados à administração da arquidiocese. Além disso, eles eram muito poderosos e tinham influência no reino da França, já que eram conselheiros do rei.
Então, quando iam a Paris, os arcebispos ficavam hospedados em um palacete que ficou conhecido como “Hôtel des Archevêques de Sens” (Palacete dos Arcebispos de Sens). Só que ainda não era o palacete tema deste texto. Para entender, vamos ver toda a história.
Até o século XIV, os reis da França, quando estavam em Paris, residiam no Palais de la Cité, onde hoje é o Palais de Justice e onde está a Conciergerie. Em fevereiro de 1358, acontece uma revolta popular na cidade. O povo, então, invade o Palais de la Cité e machucam o delfim (herdeiro do trono) Charles, futuro Charles V, que consegue escapar. Nessa época, seu pai, o rei Jean II, era prisioneiro dos ingleses em Londres e era ele, o herdeiro do trono, que administrava o reino.
Charles escapa de Paris e viaja para algumas regiões francesas para encontrar e arrumar mais aliados. Quando retorna para a capital, um mês depois, decide não voltar a viver no Palais de la Cité, pois não se sentia em segurança e tinha más lembranças do lugar.
Então, ele resolve construir um palacete para si no Marais e, para isso, adquire vários terrenos e imóveis no bairro, incluindo o Hôtel des Archevêques de Sens. Assim, de 1361 a 1365, é construído o Hôtel Saint-Pol (que hoje não existe mais). Para que os religiosos não ficassem “desabrigados”, Charles lhes cede uma outra residência, o Hôtel d’Hestomesnil.
Os arcebispos de Sens utilizam esse palacete durante um pouco mais de um século. Até que Tristan de Salazar, arcebispo de Sens de 1474 a 1519, alegando que o lugar estava insalubre e que não dava mais para ser usado, decide colocar tudo abaixo e construir um novo palacete no lugar. A nova construção deveria ser mais digna da posição que ocupavam no reino. É assim que nasce o Hôtel de Sens.
À direita, fachada do Hôtel de Sens
Os trabalhos são colossais e duram quase cinquenta anos, de 1475 a 1519. Infelizmente, Tristan não chega a ocupar o lugar, pois morre alguns meses antes do final da construção. Mas seus sucessores o ocupam por um bom tempo. Mais precisamente até 1605. É quando o rei Henri IV pede ao arcebispo de Sens, seu amigo Renaud de Beaune, que ceda o Hôtel de Sens para sua ex-esposa, Marguerite de Valois, conhecida como Rainha Margot.
O soberano havia conseguido anular o casamento com a alegação de consanguinidade (naquela época não havia divórcio). Mas a verdade era que o casal não conseguia ter filhos. Então, o casamento foi anulado e o rei se casou com Marie de Médicis, com a aprovação de Margot. E, assim, ela conservou o título de rainha e em Paris foi morar no Hôtel de Sens.
Aí a vocação do lugar muda completamente. Conhecida por ser uma mulher livre para os padrões da época, a Rainha Margot promovia festas grandiosas no Hôtel de Sens. Ela até mandou cortar a figueira que ficava em frente ao palacete e dava nome à rua, (Figuier en francês) porque, segundo ela, ele impedia a passagem das carruagens.
Mas, além de ser cenário de festas, o Hôtel de Sens foi o lugar de um crime. Um dos amantes de Margot, um rapaz de 18 anos chamado Gabriel Dat de Saint-Julien, enquanto ajuda a antiga rainha a descer de sua carruagem, leva um tiro na cabeça e morre na hora. O autor do crime é o amante anterior de Margot, o conde de Vermont, um jovem de vinte anos. Alguns dias depois, o rapaz foi executado ali mesmo, onde o assassinato aconteceu,. Dizem que a rainha viu a execução de sua janela.
A estadia da rainha Margot dura mais ou menos um ano. Algum tempo depois, em 1622, Paris é elevada ao nível de arquidiocese. Então, os arcebispos de Sens não precisavam mais ir até a capital e, por isso, decidiram alugar o Hôtel de Sens. Os novos inquilinos são artesãos e juristas.
Depois, uma companhia de diligências ocupa o palacete, em 1660. Dali, elas partiam em viagem com passageiros para Dijon, Auxerre, Belfort e outros destinos no interior da França. No final do século, é a vez de alguns nobres alugarem o Hôtel de Sens.
Apesar de não ser mais utilizado pelo Clero, o palacete ainda é propriedade da Arquidiocese de Sens. Porém, quando chega a Revolução Francesa, em 1789, o Hôtel de Sens é desapropriado e se torna bem nacional. E é vendido em seguida.
No século XIX, o Hôtel de Sens, já bem degradado, volta a ser alugado, principalmente para fins industriais e comerciais. Ele abriga, ao longo do tempo, as seguintes atividades: empresa de transportes de mercadorias, fábrica de conservas, ótica, lavanderia e até a fábrica de geleias Saint-James.
O palacete chega mesmo a ser dividido em apartamentos. A última atividade comercial do lugar foi um depósito de vidro. Apesar das mutilações que sofreu, em 1862, o Hôtel de Sens é classificado como Monumento Histórico.
O destino do Hôtel de Sens seria desaparecer em ruínas, se não fosse a Cidade de Paris, que o compra em 1911. Nos anos seguintes, principalmente de 1929 a 1960, o palacete passa por várias reformas a fim de recuperar a aparência e glória de antes. Por causa do estado lamentável do lugar, vários elementos tiveram que ser reconstruídos.
Em 1961, é decidido que o Hôtel de Sens vai abrigar a Bibliothèque Forney, dedicada às artes e técnicas artísticas em geral. E ali ela está até hoje. Em 2016, uma nova reforma melhorou a acessibilidade da biblioteca para as pessoas com mobilidade reduzida.
Com seus torreões, suas lucarnas trabalhadas, suas gárgulas e suas grandes portas, o Hôtel de Sens é um dos mais belos palacetes de Paris. Apesar de alguns elementos terem sido reconstruídos, ele também é um dos raros exemplos de residência civil medieval, junto com o Hôtel de Cluny e a Tour Jean sans Peur. O palacete possui, ao mesmo tempo, elementos de arquitetura militar e civil. O portal, os torreões e a torre de menagem (torre principal) quadrada são originais.
Aliás, a entrada parece a de um castelo medieval, com a poterna e dois torreões em sacada. Ela dá para um pátio em forma de trapézio, cercado pelas dependências, que, na época de ouro do palacete, eram compostas pela cozinha, estábulos e despensa, por exemplo. No fundo deste pátio está a construção principal. A entrada para o interior deste edifício era feita pela torre de menagem, que serve todos os andares. As janelas gradeadas são características do Gótico Flamboyant, o estilo da época da construção do palacete.
Uma curiosidade: Em 1830, durante a Revolução des Trois Glorieuses, que dura três dias (de 27 a 29 de julho) e que viria a tirar o rei Charles X do trono, uma bala de canhão teria atingido a fachada principal do Hôtel de Sens e ali ficado. Ela ainda é visível, junto com uma inscrição para lembrar o ocorrido.
A Bibliothèque Forney
No final do século XIX, um industrial, Aimé-Samuel Forney, desejava revalorizar as profissões ligadas à arte francesa. Por isso, ele lega todas as suas coleções para a cidade de Paris.
A prefeitura decide, então, criar uma nova biblioteca com esse acervo e o lugar escolhido é o Faubourg Saint-Antoine, que era naquela época um bairro de artesãos. Assim, a Bibliothèque Forney é inaugurada em 27 de fevereiro de 1886, no número 12 da rue Titon, no 11ème arrondissement (distrito).
Henri de Toulouse-Lautrec. Le Divan Japonais, 75 rue de Martyrs, 1893.
Porém, com o tempo, o local fica pequeno, pois as coleções vão aumentando. Então, quando a Cidade de Paris compra o Hôtel de Sens, em 1911, fica decidido que a biblioteca seria transferida para o palacete.
Alphonse Mucha. Théâtre de la Renaissance. Sarah Bernhardt. La Samaritaine, 1897.
Só que a construção estava em ruínas, era necessário restaurá-la. E é o que acontece de 1929 a 1960, com alguns atrasos por causa da Segunda Guerra Mundial. Em 1961, a Biliothèque Forney se transfere para o Hôtel de Sens. Porém, a transferência completa só acontece em 1983.
No começo da sua história, a biblioteca era dedicada somente ao artesanato e às artes decorativas. E frequentada pelos profissionais destas áreas, como ceramistas, ourives, carpinteiros, etc, que iam ali trabalhar e emprestavam livros, objetos e modelos. Com o tempo, principalmente depois da transferência para o Hôtel de Sens, o acervo começou a se diversificar, sem deixar de ser especializado em arte. Assim, a biblioteca passou a abrigar obras sobre pintura, escultura, arquitetura, dentre outros temas. E o público se tornou mais variado também.
Auguste Racinet. Le Costume Historique, Paris, Firmin-Didot, 1888
Alguns tipos de coleções que a Bibliothèque Forney guarda: papéis pintados, cartazes, manuais técnicos do século XIX, catálogos de artistas, catálogos de Exposições Universais francesas e estrangeiras, catálogos de exposições temporárias e de museus, catálogos de vendas públicas de arte de 1800 até 1983. Tem até catálogos comerciais desde o século XIX até hoje, como o da loja de departamentos Le Bon Marché, por exemplo.
Exemplos de decoração de tecidos. Eles fazem parte de uma obra publicada em 1907 por Frédéric Fischbach, que reunia os motivos de decoração de tecidos usados até o século XIX.
Outras preciosidades da biblioteca são a coleção de revistas e almanaques, que vão do século XVIII até hoje, as amostras de tecidos e rendas e até desenhos originais de móveis e decorações, com exemplares bem antigos. Com tudo isso, a Bibliothèque Forney é a mais rica da França no que diz respeito às profissões ligadas à arte.
O Jardim
Gravuras do século XVII mostram o jardim do palacete, o que nos deixa supor que ele existe desde a construção do Hôtel de Sens, no século XV. Hoje, ele ilustra bem os jardins franceses, com seus canteiros geométricos que podem ser admirados desde a rua.
As haies dos arbustos são podadas com precisão. No interior das figuras geométricas formadas por eles há flores, que mudam de acordo com a estação. Em cada ângulo desta área verde, taxus talhados em cones marcam os contornos do jardim, dando a ele a forma de um quadrado.
O Hôtel de Sens apresenta uma disposição que será utilizada nos séculos seguintes nos palacetes do bairro: um edifício principal situado entre o pátio e o jardim. Porém, aqui há a falta de simetria bem característica da Idade Média. Assim, podemos dizer que o Hôtel de Sens é um precursor dos Hôtels Particuliers (palacetes), tão típicos do Marais.
Hôtel de Sens – Bibliothèque Forney.
1, Rue du Figuier
75004 Paris
Metrôs: Pont-Marie – linha 7.
Saint-Paul – linha 1
Horários: Terças, sextas e sábados, das 13h às 19h30. Quartas e quintas, das 10h às 19h30.
A Bibliothèque Forney faz parte das bibliotecas especializadas de Paris. Qualquer pessoa pode consultar a coleção, desde que tenha uma carteirinha. Para obtê-la, veja aqui.
Há também várias exposições temporárias na Biblioteca, mais informações nesse site.
O Hôtel de Sens pode ser visitado por qualquer pessoa. Já para ter acesso à sala de leitura, é necessário ter a carteirinha que mencionei acima. Fora isso, de vez em quando, podem acontecer visitas guiadas. Para saber mais, veja esse último link que coloquei. Outra ocasião de visitar a Bibliothèque Forney é durante as Journées du Patrimoine, que acontecem em setembro.
Jardin de l’Hôtel de Sens
Horários: De 1 de março até 30 de março, de segunda a sexta, das 8h às 18h. Sábados e domingos, das 9h às 18h. De 1 de abril a 30 de abril, de segunda a sexta, das 8 às 19h30. Sábados e domingos, das 9h às 19h30. De 1 de maio a 31 de agosto, de segunda a sexta, das 8h às 20h30. Sábados e domingos, das 9h às 20h30. De 1 de setembro a 30 de setembro, de segunda a sexta, das 8h às 19h30. Sábados e domingos, das 9h às 19h30. De 1 de outubro a 30 de outubro, de segunda a sexta, das 8h às 18h30. Sábados e domingos, das 9h às 18h30. De 31 de outubro a 28 de fevereiro, de segunda a sexta, das 8h às 17h20. Sábados e domingos, das 9h às 17h20.
Gratuito.
Catheline Perier-D’ieteren. La Restauration en Belgique de 1830 à nos jours: peintures, sculptures, architecture. Liège: P. Mardaga, 1991. (A restauração na Bélgica de 1830 até nossos dias: pinturas, esculturas, arquitetura).
Sou de São Paulo, e moro em Paris desde 2010. Sou jornalista, formada pela Cásper Líbero. Aqui na França, me formei em História da Arte e Arqueologia na Université Paris X. Trabalho em todas essas áreas e também faço tradução, mas meu projeto mais importante é o Direto de Paris. Amo viajar, escrever, conhecer pessoas e ouvir histórias. Ah, e também sou louca por livros e animais.
Estou montando meu roteiro por Paris e estava em dúvida se ia valer a pena ou não visitar o Hotel de Sens, mas depois de suas explicações já decidi que vou. Muito obrigada pelas dicas!
Nossa, não conhecia o Hôtel de Sens e a Bibliothèque Forney, mas AMEI a construção parecendo mesmo um pequeno castelo no meio da cidade! Dica anotadíssima pra quando voltar a Paris – preciso urgentemente! rs
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Comentários (7)
Marcela
1 de outubro de 2021 at 13:36Estou montando meu roteiro por Paris e estava em dúvida se ia valer a pena ou não visitar o Hotel de Sens, mas depois de suas explicações já decidi que vou. Muito obrigada pelas dicas!
Fernanda
2 de outubro de 2021 at 3:17Nossa, não conhecia o Hôtel de Sens e a Bibliothèque Forney, mas AMEI a construção parecendo mesmo um pequeno castelo no meio da cidade! Dica anotadíssima pra quando voltar a Paris – preciso urgentemente! rs
Izabela Andrade
4 de outubro de 2021 at 12:41Que lugar incrível, cheio de beleza e cultura, amei saber sobre mais um lugarzinho lindo na França, com certeza irei incluir no meu próximo roteiro.
Renata Rocha Inforzato
28 de fevereiro de 2022 at 0:20Oi Izabela! Se gostar de moda e arte, vai adorar a biblioteca.
Gisele
5 de outubro de 2021 at 11:41Se essas paredes falassem…
Eu já visitei a parte externa do Hôtel de Sens anos atrás, mas não conhecia a história dele. Muito interessante!
World by 2
16 de fevereiro de 2022 at 12:29Amei o hotel! Se tem portinha vermelha já me conquista!
Renata Rocha Inforzato
24 de fevereiro de 2022 at 1:18Tb adoro essas portinhas.